A MORTE DE UMA LÁGRIMA
As lágrimas são assim...
Vivem quietinhas em seus canais na expectativa de um dia
poder rolar em um rosto.
Elas apenas aguardam o momento certo.
Mas há sempre aquela lágrima que não se conforma em viver na
passividade, aguardando na fila lacrimal, até chegar a sua hora. Elas querem
experimentar viver em outros canais. Ficam inquietas e querem adquirir outras
vivências antes que chegue o dia tão temido por cada lágrima: o rolamento.
As lágrimas também choram ao ver partir suas lágrimas mais
chegadas. Aquelas que ficam pertinho. Cantam canções, pulam, brincam,
aproveitando carona na felicidade alheia.
Mas elas não sentem inveja daquela felicidade, pois, esta
lhes concede a oportunidade de viver um pouco mais.
A melhor coisa que acontece na vida de uma lágrima é a
felicidade alheia, porque essa é também a sua felicidade.
A única certeza que elas têm é que o dia que aquela
felicidade desmoronar, lágrimas vão rolar e as que ficarem retidas ali, terão
oportunidade de viver mais um pouco, mas não serão as mesmas. Uma parte delas
se foi... rolou pela derme de alguma face cuja alegria foi interrompida por um
momento.
Elas também têm a esperança que novos sorrisos brotarão e
mesmo sabendo que o dia delas também chegará, continuam cantando, sorrindo,
vivendo.
Mas houve lágrimas que ousaram procurar outros canais.
Canais mais desenvolvidos que ofereciam maiores oportunidades de vida para
elas.
Isso não tirava delas a certeza que um dia rolariam, mas,
pelo menos, ousaram!
Algumas foram para canais tão desenvolvidos, onde muito
concreto e tecnologia foram aplicados a fim de melhorar a qualidade de vida
lacrimal. Mas viram quanta ilusão havia no meio do concreto e nas redes
tecnológicas. Afinal, elas endureciam aquele que as retinha, de forma que não conseguia
derramar uma lágrima sequer. Perceberam que a tecnologia e o concreto eram
bons, mas separavam... dessa forma, havia mais conforto, mas em contrapartida,
cada lágrima vivia mergulhada em sua própria solidão, ainda que se comunicasse
com as outras. Sabe? Agora, mesmo que desejassem rolar não poderiam. O concreto
dominou e fechou os canais.
Daí as lembranças povoavam seus átomos e saudosamente
cantavam, dançavam, pulavam, mas sem o mesmo vigor... Porque melhor lhes fora
quando pulavam e cantavam juntinhas. Porque assim não percebiam quando o canal
se abria e chegava a hora de alguém rolar.
A vida do outro lado era um mistério para aquelas que
ficavam.
Ninguém ousava nem imaginar como era, pois, isso gerava um
sentimento de derrota, de perda e consequentemente de tristeza. Então, elas
escolhiam viver sem se preocupar com a hora que o canal se abriria.
E o fim daquelas que ousaram, foi secar-se recolhidas em sua
insignificância. O progresso lhes impediu de cumprir sua missão. Mas agora o
canal não se abria mais... Para que quando rolassem, aliviassem uma dor
qualquer ou esvaziassem um peito que estava prestes a explodir. Isso não era
mais possível! Pois aquele ser não chorava, era desprovido de sentimentos,
porque estava envolto em camadas de concreto que foram sendo formadas a cada
grito, a cada indiferença, a cada apedrejamento, a cada escassez ou falta de
pão, a cada injustiça, a cada falta de oportunidade...
Os sentimentos eram implodidos pela falta de lágrimas.
Afinal, elas se ocuparam tanto com o progresso que se esqueceram do objetivo da
sua existência, que era rolar.
O rolar de uma lágrima é o seu momento mais nobre. Mesmo
sabendo que jamais voltaria para seu canal e sequer veria a quem amava.
Ficaria ali, inerte, presa em um tecido, lançada ao chão ou
outro destino qualquer. Mas estaria feliz porque sabia que tinha cumprido a sua
missão. Sabia que se esforçara ao máximo para aliviar uma dor. Sabia que o seu
rolar não foi em vão.
Por isso, a maior parte preferia não se aventurar pelo mundo
lacrimal. Escolheram ficar ali na fila, cantando, pulando, dançando, se
alegrando com outras alegrias e vivendo intensamente cada momento, sem se
preocupar com o portal.
As mais sábias ensinavam às aventureiras que o progresso não
era de todo ruim, mas cegava e tirava a oportunidade de aproveitar o que havia
de melhor na vida de uma lágrima, que era a boa convivência, que gerava a união
em prol do bem-estar de todos aqueles precisavam chorar.